As ovelhas negras do senso comum

As ovelhas negras do senso comum

Desde a minha adolescência, fase em que comecei a filosofar sobre a vida e pensar com afinco sobre como a minha relação com o mundo acontece e qual é o meu papel nela, fui entendendo que os elementos que nos cercam são percebidos por nós de acordo com nossa vivência, nosso repertório adquirido com os anos. Ou seja, se reunirmos dez pessoas em uma sala e colocarmos em pauta um determinado assunto, existirá a possibilidade de termos dez opiniões diferentes, e, dependendo do tema, nenhuma delas pode ser considerada certa ou errada. Pois cada indivíduo tem sua própria (e única) percepção sobre cada assunto.

Até aí, tudo bem. É uma coisa que muita gente também percebe quando analisa a relação indivíduo versus meio em que vive. Mas agora vamos nos aproximar do ponto ao qual quero chegar: em contraposição a essa linda teoria, vejo uma cultura social que, mesmo de forma involuntária, praticamente impõe qual deve ser sua percepção e sua posição sobre determinados assuntos. E geralmente faz isso usando o maniqueísmo (relação de oposição entre o “bem” e o “mal”, ou entre o “certo” e o “errado”).

Ao contrário do que você deve estar pensando, desta vez não estou me referindo a política, religião ou outros assuntos sociais importantes e complexos sobre os quais todo mundo sabe que há inúmeros pontos de vista a serem analisados. Estou me referindo a contextos culturais, porém menos complexos, como música, cinema e coisas do cotidiano. Contextos que também compõem nossa identidade individual.

É rotineiro em nossos círculos sociais (amigos da faculdade, amigos do trabalho, amigos de gandaia etc.) surgirem, por exemplo, os assuntos citados: música e cinema. Aí, cada um fala com amor sobre o que gosta e com respeito (às vezes falso) sobre o que não gosta. “Cara, eu adoro Charlie Brown Jr!”. “Acho muito foda o Charlie Brown Jr., mas prefiro os Titãs”. “São bandas legais, mas pra mim, nada se compara a Legião Urbana”. “Ah, sim, claro!”. “Com certeza!”. “Eu já num gosto de Legião Urbana, acho um som meio chatinho, insosso…” – BUM! Eis aí a ovelha negra da unanimidade. “Legião Urbana, chatinho?! Cê tá falando sério, cara?”. Ou seja, pelo fato de muita gente gostar de Legião Urbana, quem não gosta parece “o errado” da turma. E é quase tido como o excluído de um paradigma que era pra ser apenas uma questão de opinião. Lembra que eu falei sobre o maniqueísmo? Então…

Uma vez, eu estava saindo com uma guria, e ainda estávamos naquela fase de “nos conhecermos melhor”. Fomos a um bar, e conversa vai, conversa vem, começamos a falar sobre filmes, assunto que eu e ela gostávamos. Ela falou que era apaixonada por Harry Potter. Eu soltei um sincero e ingênuo “Eu nunca assisti nenhum filme do Harry Potter, sabia? Nem cheguei perto do livro.” Resultado: silêncio de uns vinte segundos. Não sei se ela não sabia o que falar ou se lhe faltava ar pra esboçar qualquer outra reação que não fosse esbugalhar os olhos, única coisa que ela conseguiu. “Sério? Como assim? Em que mundo você vive? Todo mundo já assistiu Harry Potter!”, foi o que veio a seguir. Me senti como um assassino psicopata que tivesse acabado de confessar a morte de dezenas de pessoas. Aí, tive que explicar (gentilmente, é claro) o que era pra ser óbvio: o fato de eu não gostar não significa que eu odeie ou tenha alguma coisa contra os filmes em questão. Harry Potter apenas não é uma franquia cuja história desperta meu desejo de assistir. Em outras palavras, existem sim pessoas que não se enquadram nesse paradigma (gostar de Harry Potter), e elas não são ETs, apenas têm uma opinião diferente do senso comum.

Fico pensando no pessoal que gosta de ouvir funk. Não o original, mas o funk nacional, vindo da periferia. É um gênero musical tão apedrejado pelo senso comum… “Funk é um lixo!”, “Funk só ensina coisa errada!”… Sendo que, se você parar pra analisar, deve concluir que no gênero existem tanto letras com conteúdo mais sexual, às vezes depreciativo, e por isso suscetível a críticas, quanto letras mais inocentes e convencionais (tipo “Se ela dança, eu danço”, lembra?). Mas o senso comum faz o que? Generaliza e rotula o gênero como um todo como algo destrutivo e, pior, taxa as pessoas que o ouvem como incultas. Funk é um exemplo de tema que, ao contrário de Legião Urbana e Harry Potter, o senso comum define que “o certo” é não gostar, não ser adepto. Mas claro que poderíamos descrever inúmeros outros exemplos, até mesmo de outros campos culturais que não sejam música e cinema.

De tudo isso, acho que fica uma mensagem principal. Ela diz que o fato de uma pessoa não gostar da banda X ou do filme Y significa apenas uma coisa: que essa pessoa não gosta da banda X ou do filme Y. Por mais que a maior parte da sociedade goste, essa pessoa, parte de uma minoria, não gosta. E não há nada de errado nisso.

Sobre o autor

Publicitário, especializado em Marketing e Comunicação Integrada. Amante da vida, encantado por pessoas e suas singularidades. Fã inveterado de filmes de terror, ouvinte assíduo de música jamaicana e rock pesado. E, claro: Vai, Corinthians!

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