Cronologia

rio_tietê_1926Eu gosto de imaginar como as coisas eram antes de serem como a gente conhece hoje. Eu sei, parece papo de doido, mas eu tive um professor que uma vez me disse: “o mundo não começou quando você nasceu”. E é verdade, óbvio, mas é verdade!

Colecionamos as memórias das coisas que a gente viveu desde quando ouvimos os primeiros sons, vimos as primeiras paisagens, conhecemos as primeiras pessoas. Nessa fase de descoberta a gente foi apresentado ao mundo e então começou nossa história, mas antes disso muitas coisas precisaram acontecer, e principalmente dar certo, para que você estivesse exatamente aí lendo esse texto.

Pense nas guerras, nas doenças, nas dificuldades do passado. Em meio à tudo isso estavam seus ancestrais, sua família, pessoas que foram conhecendo outras pessoas, casando, tendo filhos, formando mais famílias.

Enquanto eu penso nisso, fico indignada com gente que vive como se o mundo fosse uma invenção particular. Coisas já aconteceram antes de você estar aqui.

Dizem que as águas de um rio nunca passam duas vezes pelo mesmo lugar, mas um rio perdura e nos faz lembrar que muitas coisas acontecem e passam, mas o caminho é longo e contínuo, tem um “porquê “ e um “para onde”.

O rio Tietê e essa imagem que ele tem, tão arraigada à poluição e ao descaso, são uma marca dolorosa que corta nosso Estado em 1.100 quilômetros e que já carregou em suas águas muitas histórias e memórias por centenas de anos. O “para onde” do Tietê é na contramão dos cursos naturais dos rios, ele corre para o interior do país e não deságua no mar – para os índios, isso tornava o rio místico e misterioso.

O Tietê é um sobrevivente bipolar. Quem conhece o rio hoje, duvida que as mesmas águas da capital paulista nascem tímidas e limpas em Salesópolis e correm também nas barragens de Barra Bonita.

Seus trechos limpos e sujos são lembretes de tudo aquilo que precisou dar certo um dia, toda a história que aconteceu antes que a maioria de nós tivesse nascido. Por suas águas já andaram os índios, os bandeirantes, esportistas, pessoas comuns que faziam piquenique às suas margens enquanto olhavam as crianças brincando no rio.

Eu gosto de imaginar as coisas como eram antes. Eu tenho aquela curiosidade duvidosa de quem admira um quadro famoso, aproxima os olhos atentos da tela e questiona se aquela pintura é a original, se o artista famoso colocou mesmo as mãos ali e se realmente pensou em cada pincelada. Essa mesma curiosidade me deixa intrigada ao olhar para um rio que fede à indiferença, mas que é apresentado nos livros de história como um dos fluxos da evolução: será que tudo isso foi verdade? Nesse caso, o “porquê” foi o progresso e o preço foi caro.

Da curiosidade à contestação.  Tudo isso é a cólica de pensar nas coisas que deram certo ontem para que dessem errado hoje em nossas mãos.

Vez ou outra imagino como seria bom se algumas coisas fossem diferentes, como seria bom ter um rio limpo que lembrasse as pessoas de que o mundo não começou quando elas nasceram.

As águas de um rio não passam duas vezes pelo mesmo lugar, mas se passassem, valeriam o lembrete das coisas como eram no tempo dos saudosistas, como estavam nos planos das heranças antigas e seria o começo da reconciliação do homem com o seu passado.

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