Fome

Fome

Estava eu indo como sempre para o trabalho, quando me deparo com um garoto de rua, devia ter algo em torno de 15 ou 17 anos, ele segurava um pacote de biscoitos em uma mão e apoiava a outra no colo, olhando fixamente para baixo. Algo naquele garoto me atraiu, fui até ele e me sentei ao seu lado, perguntei a razão pela qual ele estava ali, quieto, sem comer os biscoitos e daquele jeito, tão cabisbaixo. Ele começou a responder, e aqui está o relato do garoto, com pequenas mudanças para facilitar a compreensão:

“Eu sou pobre, moço, eu sei disso, todo mundo diz, já disseram tanto que finalmente me fizeram ter certeza. Eu não acredito que isso possa mudar um dia, nunca vou acreditar, me fizeram parar de acreditar. Eu queria poder olhar para frente e pensar que tudo vai acontecer, mas não vai. Tenho fome, e ela não passa.”

Neste ponto, perguntei ao garoto, já que ele tinha fome, por que razão não comia os biscoitos que estavam no pacote em sua mão, ainda lacrado.

“Não quero biscoitos moço, não quero comer, quero viver, se entro no mercado em um dia de chuva, e roubo esse pacote, não é só nos biscoitos que eu penso, eu quero ficar coberto, sair do frio molhado da chuva, eu tenho fome de teto. Quando eu olho para o alto e vejo prédios, eu quero entrar, eu quero sentir o calor de uma casa, eu tenho fome de morar. Quando a minha mãe me põe pra fora da cabana onde a gente mora para conseguir alguma coisa, eu tenho fome, eu tenho fome de…como chamam mesmo aquelas coisas que a gente vê nos filmes? Que tem as pessoas juntas e elas vivem na mesma casa?”

Família, respondi, muito emocionado, pensando que havia acabado de sair de uma cafeteria, pois antes de sair para o trabalho „‟bateu uma fominha‟‟, e percebendo que aquela média e aquele pão na chapa não eram nada, derrubei algumas lágrimas, e o garoto continuou:

“Isso, família, eu tenho fome de família, acho que mais do que de qualquer coisa, eu comeria tudo isso que eu falei, até a última garfada, se eu tivesse. Mas eu passo fome, e essas pessoas que andam por aqui me entregam alguns trocados, achando que é isso que eu preciso, que é isso que eu quero e que isso vai mudar tudo, e isso não vai. Esse é o problema, elas só acham, ninguém passa a minha fome para saber que algumas moedas não vão me ajudar. Eu costumo jogar todas as moedas na fonte aqui atrás, pedindo para que algo apareça e suma com a fome.”

Olhei para trás, estávamos sentados na borda de uma fonte, e abaixo do nível da água vi muitas moedas, por um instante parei para pensar em cada coisa, cada desejo que cada moeda significava, qual a fome que cada ponto brilhante daqueles tinha o objetivo de sanar.

“Minha mãe acha bobeira, sabe. Acha que eu devia levar o dinheiro para casa, comprar comida, fazer alguma coisa. Me dá umas coisas pra eu ir lá pra rua, fazer dinheiro. Dinheiro, como eu odeio essa palavra, é incrível como as pessoas acham que isso pode resolver tudo, que isso é o que todos precisam. Para mim é só papel.”

Já muito emocionado, esqueci que ia trabalhar e fixei meus olhos na mão suja do garoto, que agora segurava uma nota de dois reais, ele a amassava com força.

“Viu, amassa, como qualquer outra folha, como qualquer uma dessas que jogam por aí. É isso que mata a fome de vocês de roupa preta, moço?”

Desabei-me em lágrimas, minha mente retornou para minha casa, aonde minha mulher e minha filha deveriam estar assistindo televisão, sentadas naquele sofá caro, naquele apartamento que havia me custado os olhos da cara. Parei para pensar no quanto odiava meu trabalho, e só andava até lá todos os dias para garantir que minha família tivesse tudo isso, sendo que poderia viver muito bem com um salário mais baixo, talvez em outro emprego, e respondi ao garoto:

“Não mata a fome, pois nós, homens de roupa preta, não temos fome, não temos nada, talvez não tenhamos nem a nós mesmos, não queremos assumir que não nos conhecemos e que nenhum pedaço de papel nos faz felizes. A fome que a gente tem é de querer sempre mais e mais pedaços de papel, a fome que a gente tem é besta, desnecessária, a gente só quer dinheiro, cada vez mais, e esses pedaços de papel acabam dominando a gente, sabe.”

O garoto me olhou sem nenhuma expressão no olhar, enquanto eu chorava desesperadamente, querendo que a vida me explicasse a razão de eu ter vivido todos esses meus 39 anos.

“Entendi, então você gosta disso? Pode pegar, moço. Vou ali atrás daquele homem com a caixa marrom que faz música, estou com fome de barulho bonito.”

Dizendo isso, ele me entregou a nota de dois reais, e eu fiquei ali, chorando, sentado, em uma mão a nota, que agora não passava de um pedaço de papel, e na outra, todas as minhas fomes que começavam a aparecer.

Atualizado em 02/2021
Foto por Luana Azevedo em Unsplash

Sobre o autor

Um cara que é estudante de jornalismo (quase) dedicado, com uma barba ruiva que só vê barbeador (bem) de vez em quando e que gosta de tentar entender o que se passa pela cabeça das pessoas. Meio maluco, mas se entende com a bagunça que é sua mente, gosta de videogames e quadrinhos e é aficcionado por buscar explicações (não) científicas do mundo em que vocês acham que ele vive. Tudo isso enquanto toma uma xícara de chá e ouve discos de vinil de várias décadas atrás.

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