Uma mulher que dirige

Uma mulher que dirige

Minha mãe sempre dirigiu e sempre me incentivou a também ser dona da minha própria estrada, com o perdão do trocadilho. Quando eu fiz 18 anos, meu presente foi a CNH. Fiz as aulas, não passei na primeira prova prática, mas consegui na segunda. Yeaah!

Depois disso, fiquei com minha PPD e treinei poucas vezes. O estresse de pegar o carro e assustar seus caronas acabou me afastando das ruas durante um tempo… Mas logo estava eu com carro próprio, dando rolê a 30km/h às 3 da manhã para poder me acostumar. Não sei se você nasceu sabendo, mas eu fui aos poucos. Primeiro por perto de casa, caminhos já conhecidos… Depois me aventurando por lugares novos com o Waze (que eu batizei de Alessandra, minha copiloto) e fiz uma playlist no Spotify chamada “Velozes e Furiosos”. Sim, comecei a me sentir em casa!

Mas aí comecei a observar algumas coisas que me deixaram bastante irritada…

A primeira coisa é que toda vez que eu limpo o carro na rua (moro em apartamento e não tenho vaga no condomínio), diversos homens mexem comigo. A maioria das cantadas escrotas seguem a linha do “Aí sim!” porque (eu acho) que eles adoram ver uma mulher que cuida de um carro.

Isso é ridículo. Independente da roupa que estou vestindo, do que estou fazendo ou de onde estou, cantadinhas são escrotas. Mas aí pronto: identifiquei o primeiro padrão na minha relação com o carro.

Depois eu percebi que alguns homens (estou tomando cuidado para não generalizar) simplesmente acham que as mulheres não conseguem dirigir. Esses dias eu estacionei o carro em uma vaga, alguém estacionou FORA DA VAGA atrás de mim e eu tive que fazer MUITA manobra pra tirar o ~possante dali. Meu carro não tem direção hidráulica, então todas as manobras demoram mais que o normal.

Nos quase quatro minutos que levei pra tirar o carro dali, indo 10 centímetros pra frente, esterçando, indo 10 centímetros pra trás, esterçando pro outro lado… Três caras apareceram oferecendo ajuda. Não foram rudes e a intenção não foi negativa… Mas eu tenho certeza de que se fosse um cara dirigindo, ninguém outro ofereceria ajuda.

O fato é que eu estava conseguindo, eu estava manobrando, a coisa estava fluindo… Mas eles achavam que não. “Coitada da moça, vou ajudar”. Gente, a moça ta conseguindo! Deixa ela lá! Se ela precisar de ajuda, ela pede.

Eu linda e plena manobrandoA terceira coisa me deixou incrédula.
Como eu disse, meu carro dorme na rua. Recentemente um vizinho fez uma pintura na casa e respingou muita tinta no meu carro. Beleza. Pedi que meu pai fosse comigo ao funileiro porque como eu não conheço os lugares (e fiquei com medo de ir sozinha). Fomos três lugares:

  • Cheguei no primeiro local e o funileiro apertou a mão do meu pai, mas apenas me olhou. Eu falei o que tinha acontecido, pedi o orçamento, coloquei no meu nome… E ele entregou o papel para o meu pai.
  • O segundo lugar nem olhou na minha cara, como se eu não existisse, e enquanto eu explicava o problema, o funcionário fazia perguntas AO MEU PAI (que estava de boca calada enquanto eu explicava a situação toda).
  • O terceiro lugar também me ignorou, mas na hora de colocar o nome do proprietário no orçamento, ele teve a PACHORRA de achar que eu estava falando pelo meu pai ao ponto de entender que o nome dele era Gabriel (quando na verdade eu disse Gabriela, meu nome).

Ou seja: uma mulher indo ao funileiro para resolver um problema do próprio carro? Eles não estão acostumados com isso. Não to dizendo que TODO funileiro é assim, não to dizendo que todo homem é assim, não to dizendo que toda mulher é o oposto.

O fato é que o mundo automotivo assusta um pouco, admito. Quando você ultrapassa um cara, você fere o ego dele. Quando alguém te xinga, é “oh vadia” ou algo sempre com conotação sexual. Por que ninguém me xinga de “roda presa” ou dá um berro de “comprou a carta?”? Nãooo, é sempre “oh, sua puta!”. E desde quando as putas não podem ser melhores que o Brian O’Conner?!

É curioso que no começo do texto eu mencionei as cantadas de “aí sim!” quando eu limpo o carro, mas quando eu estou dirigindo, eu sou a vadia. É triste observar como a mulher serve para ser um adereço no carro, mas não como uma motorista.

Você não consegue ser respeitada como um homem é. Não só no trânsito, eu sei e você sabe. Mas o asfalto ainda é um território bastante machista. Eu vou continuar dirigindo, tentando fazer a diferença. E você, mulher, pegue o carro! Treine, leve seu tempo para fazer a baliza, vai no seu tempo… Mas vai!

Atualizado em 03/2021
Foto por Andraz Lazic em Unsplash

Sobre o autor

Teve a ideia de criar o Sobreviva em São Paulo, foi lá e fez. Jornalista, trabalha com social media e gosta de uns rolês roots. Acampa no mato, sobe montanha e vive na selva de pedra. Já quis ser detetive, salvar o mundo e fugir com os ciganos. Tem uma relação de amor e ódio com São Paulo, fica para ouvir músicos de rua e corre para nunca chegar atrasada.

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